domingo, 23 de outubro de 2011

De José Manuel para José Manuel (sobre o que se escreve aos filhos…)

Caro José Manuel Fernandes, permita-me que o trate assim já que é visita regular de minha casa, mesmo sem convite, tanto via jornal Público como via TV.

Na semana passada li o artigo “Carta a um filho ausente” que o Miguel Sousa Tavares escreveu no Expresso (15/10/2011) e pensei que também deveria escrever ao meu filho, mas ontem ao ler o seu “Carta a um filho sobre estes dias que correm” (Público 21/10/2011) decidi que também o meu filho teria direito a uma missiva. O meu filho que, apesar dos seus sete anos e de já saber ler com fluência, já percebeu o que o Gaspar lhe disse “nestes dias que correm”, o que implica que não vai poder nos próximos anos ‘ter’ férias, ‘ter’ Natal e quem sabe talvez ‘ter’ Páscoa ou mesmo ‘ter’ aniversários…

Penso que a sua longa carta peca por lhe faltar uma série de justificações que ajudem a perceber a actual situação, e por isso gostaria de lhe deixar algumas reflexões para que os nossos filhos fiquem melhor elucidados.

Estou consigo quando diz que “não culpa só os políticos”, ou só “os banqueiros” mas já não o acompanho na generalização a toda “uma nação que se embebedou com a ilusão de ser como os outros europeus no espaço de uma década”. Que houve bebedeira é evidente! Mas alguns fizeram-no com champanhe, muitos com espumante, mas a maioria (mesmo a crédito) ficaram-se pelo ‘frisante’.

Este meu filho tem duas irmãs (1971 e 1973) que, como eu, saíram de casa quando casaram: uma mora em casa arrendada e a outra em casa adquirida, mas a generalidade dos seus amigos (da mesma geração) preferem pagar uma prestação mais baixa pela compra de habitação própria do que uma renda igual ou mais cara por uma casa arrendada. De quem é a culpa? Dos banqueiros com o seu crédito fácil ou dos senhorios que após décadas de rendas sem aumentos e sem obras viram a possibilidade de lucros rápidos e fáceis?

Diz também ao seu filho que “não lhe vai contar a história de todas as oportunidades falhadas ou de todas as políticas criminosas” mas na sua “tentativa de humildemente explicar como lhe expropriamos o futuro” mas aqui também considero que a sua carta falha em muitas explicações.

Ao dizer que a “revolução não nos mudou, apenas transformou tudo em direitos”, está a meu ver a esquecer e a branquear muita coisa. Eu bem sei que quando se deu a revolução, o José Manuel Fernandes só tinha 17 anos e eu já tinha 29, mas como é um homem culto que dedicou a sua vida ao jornalismo (wikipedia) tem a obrigação de explicar muito melhor o que realmente aconteceu.

Eu sou um pensionista daqueles que para si “assumiram direitos como a reforma aos 55 ou 56 anos”. A verdade é que este meu “direito” deu muito jeito ao meu empregador pois subsituiu um técnico com mais de 50 anos de idade por dois jovens de vinte e poucos anos a ganharem os dois menos do que o que foram substituir na altura. E ainda puderam fazer esta operação fantástica ao abrigo de uma ‘situação económica difícil’ provavelmente com apoios fiscais. Como você já andava na informação devia saber porquê, quais e quantas foram as empresas que beneficiaram deste esquema. E já agora quem o permitiu.

Quando diz que “não há profissões mas sim posições”, de quem está a falar? Dos trabalhadores assalariados ou contratados precários (uma minoria…) ou dos políticos e seus boys da administração pública? E diga-me, na sua indignação em quantas pontes e feriados trabalhou? E sobre a avaliação, fala das cerca de 300.000 pequenas e médias empresas onde não há qualquer avaliação desde os quadros superiores ao mais simples trabalhador, e nas quais o empresário/patrão despede apenas como base nos seus exclusivos critérios. Eu e os meus colegas de emprego (600 na altura, 2000 hoje) fomos/são avaliados anualmente! Bem sei que trabalhei numa multinacional, mas não é assim na generalidade das grandes empresas e na administração pública mesmo com os erros que se conhecem e os esforços para a sua correcção? Quantas vezes foi avaliado e quantas avaliou subordinados?

Quanto aos jovens estou de acordo quando diz, “não há oportunidades nem bons olhos para os mais novos”, mas quem educou os mais jovens? As famílias ou a escola? Qual o seu contributo? Depois do seu dia de trabalho ainda tem tempo/paciência para educar o seu filho? Ou deixa essa tarefa aos professores do colégio/universidade particular que ele (alegadamente) frequentará e/ou à empregada (alegadamente) precária que trabalha em sua casa?

Já agora diga-lhe quantos jovens empregou e com que vínculo enquanto foi subdirector, director-adjunto e director com lugar no Conselho de Administração do Público (1990-2009)? Todos eles, provavelmente, jovens qualificados através do investimento público no ensino superior desenvolvido nas últimas duas décadas em Portugal, e que procuram incessantemente um estágio para a sua primeira inserção profissional!

Quanto ao ”crescimento da economia e ao dinheiro que foi chegando tanto dos emigrantes como o da Europa” o que foi feito dele? Quem o gastou/ficou com ele? Estamos a falar de que época? A de 1985 a 1995? Dos anos dos jeeps para agricultores, dos Maseratis, Porsches e outros utilitários para os empresários falidos ou a falir? Ou do cimento e alcatrão para as grandes obras (CCB, Ponte Vasco da Gama, Expo 98 e auto-estradas)?

Quanto aos Velhos do Restelo, refere Medina Carreira que só começou a falar alto no seu programa Plano Inclinado (Novembro 2009 a Fevereiro 2011), mas no entanto foi Secretário de Estado do Orçamento e Ministro das Finanças no VI governo Provisório de Pinheiro de Azevedo e apoiou publicamente em 2006 a candidatura de Cavaco Silva à Presidência da República sem que nessa ocasião se ouvisse qualquer crítica à situação económica deixada pelos seus governos.

É pena só falar das campanhas da Cofidis, então e as campanhas dos bancos públicos e privados com as suas ofertas de crédito fácil e lucros escandalosos? E os mercados? Como ganhariam os milhões diários se não facilitassem os créditos aos países em desenvolvimento, mesmo a juros agiotas?

É também interessante a sua “admiração pela frontalidade do governo pela forma como nos veio dizer que temos que empobrecer, com destaque pela franqueza do ministro das Finanças na televisão” e não me espanta todas as considerações que posteriormente faz sobre as medidas que se propõem tomar. Só esperava que dissesse ao seu filho que, mesmo tendo que mudar de vida como se impõe, deveríamos esperar que quem nos governa não tivesse prometido o que prometeu para chegar ao ‘pote’ e que agora pudesse realisticamente negociar medidas menos dolorosas para pagar o que se deve. É dessa indignação que se trata!

Passou toda a sua carta a referir os direitos que as nossas “gerações sempre reivindicaram e que foram pagos pelo dinheiro de todos”, no entanto não li uma única palavra para os deveres que milhões de todos nós são obrigados a cumprir diariamente seja por imperativos éticos (poucos) seja por imposição daqueles que bem ou mal fomos nos últimos 37 anos elegendo.

Quanto ao seu filho não sei o que ele vai aprender e perceber destes dias conturbados que vivemos, quanto ao meu, sei muito bem o que lhe estou/vou dizendo sobre a evolução pela qual este país passou, com todos os erros e defeitos, desde que o avô dele constitui família e permitiu que ele nascesse nesta época bem diferente da época em que eu nasci. Espero que ambos se indignem conscientemente mas principalmente que tenham informação séria e completa para que pensem pela própria cabeça.

Aos nossos filhos recomendo a audição de Mário Viegas lendo de Jorge de Sena a "Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya".
Cordialmente

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